José, um jovem professor de História, casou-se com Maria, e os dois tiveram uma filha. Stella nasceu forte, bonita e faminta, mas a mãe estava fraca, pálida e febril e mal podia amamentar a criança. Para grande tristeza, Maria morreu três dias depois. Stella estava órfã. Foi inicialmente amamentada com leite de vaca, que lhe fez muito mal a saúde. Provocava vômitos e diarreias, fosse o leite fervido ou cru. Tentaram alimentar com leite industrializado, empacotado, engarrafado e em pó, e o resultado foi o mesmo. Todos os tipos e marcas de leite foram testados. Nenhum deu bons resultados. O organismo da menina não aceitava leite de vaca. Recorreram ao leite de cabra, e ao de ovelha, que também não funcionaram. Apelaram depois ao leite de égua, igualmente rejeitado pelo organismo da menina. Contrataram uma ama de leite, mas a menina recusou seus seios. enganavam a fome da recém-nascida com chazinhos de camomila, capim-cheiroso, cidreira. Ela parava de chorar momentaneamente e dormia, mas logo acordava chorando de fome. Estava um trapinho, só pele e osso. temeram pelo pior.
No mesmo dia em que Stella nasceu, Loba, a cadela pastor alemão da família, um belo animal de pelagem preta, teve três cachorrinhos, fortes e espertos. Mas no terceiro dia eles morreram, ninguém soube dizer por quê. Loba andava pela casa à procura dos filhotes. Tinha as tetas cheias de leite, que escorria até o chão. Não tendo achado seus filhotes, Loba foi deitar-se debaixo do berço de Stella, que estava sendo alimentada, sem efeito visível, com soro aplicado na veia. Não houve quem tirasse a cadela dali. A qualquer tentativa de a expulsar do quarto, ela rosnava e mostrava os dentes. José sabia que a cachorra sofria e que tinha leite. Veio-lhe à mente a lenda dos fundadores do império romano. Num impulso, pôs Stella para mamar em Loba. Loba aceitou Stella mamando em suas tetas, e Stella aceitou o leite de Loba.
A cachorra foi definitivamente instalada no quarto, e a menina recuperou o vigor e logo começou a crescer e engordar. José acomodou as duas numa cama grande, mas não queria que a notícia se espalhasse. E antes que as coisas tomassem esse rumo, demitiu os empregados da casa e manteve a cadela escondia no quarto. Quando visitas vinham ver a menina, só a mostrava na sala, sem a cachorra, é claro. Depois Stella começo a comer papinhas e outros alimentos sólidos e José achou que já estava na hora do desmame. Mas quem disse que Loba deixava Stella? Quando o pai se aproximava para lhe tirar a menina, ela rosnava para ele feito fera e lhe mostrava os dentes, pronta para atacar. Se não tivesse a cachorra por perto, Stella não dormia e chorava chamando por ela. Só se aquietava quando sua cabecinha repousava na barriga da Loba. dormia com a cadela lambendo-lhe o rosto. O pai se desesperava com a cena, precisava por um fim naquilo tudo. Tentou, inutilmente, o possível e o impossível para separar as duas.Sem saber mais o que fazer, José acabou por mandar matar a Loba. A menina chorou a ausência de sua ama de leite, mas aos poucos se acostumou com a nova situação. Cresceu forte e sadia até tornar-se a moça mais bonita e cobiçada do lugar.
Boa moça, bem formada, pretendentes é o que não lhe faltava. Stella teve um único e grande amor e cedo se casou com ele. viveram felizes por um tempo e ainda mais felizes se tornaram quando Stella revelou ao marido e companheiro que em breve ele seria pai. Para o jovem casal, o mundo passou a girar em torno de uma espera cultivada com amor. Seria menino? Ou seria uma menina? Naquele tempo nenhum exame permitia antecipar o que o ventre escondia. tentavam adivinhar o sexo do bebê em marcas e sinais no corpo da mãe, na forma e no volume da barriga da grávida. pelos movimentos e chutes que a mae sentia havia quem jurasse que seriam gêmeos. Para o casal, era um motivo a mais de alegria.
Mas o nascimento revelou-se uma tragédia, só testemunhada pelo marido, pela parteira e por José, que se lembrou imediatamente da história de Loba, que julgava enterrada e completamente esquecida. o marido de Stella se desesperou. A mãe, porém, recebeu suas crias com carinho, com amor e alegria, como só as mães sabem fazer. Nasceram gêmeos, como se esperava, mas os gêmeos eram dois cachorrinhos. Tinham a raça e a cor de Loba e a mesma fome de Stella ao nascer. O marido e o pai de Stella, desnorteados tentaram afastar os cãezinhos do peito de Stella. Mas Stella se enfurecia. Protegendo suas crias, mostrava os dentes e rosnava e os morderia se eles não se afastassem da cama. O marido batia a cabeça na parede, se amaldiçoava. A parteira, num canto, assutada, rezava seu terço e pronunciava fórmulas de esconjuros e exorcismo. O marido saiu do quarto não querendo ver mais nada, tinha as feições de um louco, arrancava os cabelos. Logo se ouviu um tiro vindo de outro quarto. O infeliz consorte tirou a própria vida. não teve forças para enfrentar sua desgraça. "Um a menos para compartilhar o segredo horrível", pensou José. Outra testemunha era a chorosa parteira, e o pai de Stella tratou logo de afastá-la. Ela era uma mulher sozinha, parentes somente no Norte. Vivia dizendo que queria acabar seus dias lá. O pai de Stella resolveu atender os desejos da parteira e lhe propôs que ela voltasse para sua terra. Ele lhe pagaria a viagem e lhe daria uma pensão por toda a vida. O silêncio seria sua paga, e ela concordou. Teria que partir imediatamente. Ele a levou de carro até a pensão onde ela morava, ela acertou as contas, pegou suas poucas coisas e partiu sem dizer aonde ia. No caminho da rodoviária, pararam num banco, onde José abriu uma conta para a mulher e providenciou uma ordem de pagamento mensal e vitalícia. Deu-lhe um pouco de dinheiro para a viagem e a chegada, comprou o bilhete e a pôs no ônibus. Virou as costas e voltou para casa. Restava fazer o mais difícil: dar um fim nas crias malditas da filha adorada e depois fazê-la esquecer sua tragédia. Mas ele nada mais pôde fazer: ao voltar para casa, uma tempestade imprevista derrubou ma árvore que esmagou seu carro e tirou sua vida, sem que ele tivesse tempo sequer pra dizer adeus.
Sozinha em casa, Stella escondeu seus filhos. Ao saber da morte do marido e do pai e da partida apressada da parteira, tratou de cuidar de sua vida. Enterrou seus entes queridos, vendeu todas as propriedades da família e se mudou com os filhos para um lugar distante, onde uma nova estirpe de seres encantados povoaria, um dia, o imaginário popular.
Retirado do livro: Jogo de Escolhas de Reginaldo Prandi